23 de set. de 2012

Capítulo 32

It's really not your fault



— Limonada suíça é o melhor refrescante que existe! — Sophie disse para Luke, que retirou o cabelo dos olhos.
Sua mãe já não o cortava há quase dois meses. Estava incomodando de verdade.
— Sério mesmo? Nunca provei. — Luke respondeu tranquilamente e Sophie fez que sim com a cabeça. Ela pegou uma faca e cortou começou a cortar um dos limões com cuidado. — Sua mãe te deixa mexer com facas?
— Tenho dez anos, Luke, não cinco — ela revirou os olhos e Luke deu uma risada. — Liga o liquidificador na tomada pra mim? Mamãe não me deixa fazer isso.
— Mas ela te deixa mexer com facas? — Luke ficou confuso.
— A faca não pode me fazer levar um choque de milhares de watts e morrer — Sophie explicou tranquilamente e Luke riu. — Terminei aqui. Onde está a açúcar?
— O açúcar. É errado falar a açúcar. — Luke corrigiu e Sophie entortou a boca.
Pensou em dizer o que dizia para todos: “Entendeu o que eu disse? Sim? Então não me corrija.” Mas... bem, com Luke ela não queria fazer isso.
— Ok — ela disse. — Pega o açúcar pra mim então, Lulu?
Luke deu uma risada e foi até o outro canto da cozinha apanhar a lata de açúcar.
— Esse apelido é esquisito — ele arqueou uma sobrancelha enquanto Sophie ria. — Aqui o açúcar. Quem te ensinou a fazer limonada suíça?
— Tia Sarah — ela encheu o copo do liquidificador de água, mergulhando os pedaços de limão dentro dele em seguida.
— Mas ela não é russa? — Luke ficou confuso.
— Sim — Sophie colocou algumas colheres de açúcar no copo.
— Mas se ela é russa como ela aprendeu a fazer limonada suíça? — Luke guardou o pote de açúcar onde o tinha encontrado. — Ela não tinha que ser suíça para fazer limonada suíça? Ou a limonada é russa?
— Não importa a nacionalidade da limonada — Sophie fechou o copo de liquidificador e se virou para Luke. — O que importa é que é o melhor refrescante que existe. Pega o gelo enquanto eu bato o suco?
— Aham — Luke concordou e se dirigiu a geladeira.
Sophie apertou o botão no liquidificador que triturou os limões e misturou o açúcar com a água. Não ficou mais do que trinta segundos batendo o suco, logo ela re-apertou o botão. Luke havia retirado alguns cubos de gelo.
— Você pode tirar o copo enquanto eu pego a coisa pra coar? — ela perguntou à Luke que riu.
— Quer dizer a peneira?
— Isso — ela esboçou um sorriso. — Peneira. Vou pegar, tira o copo do liquidificador.
Luke fez que sim com a cabeça e rodou o copo do liquidificador para retirá-lo. Impulsionou-o para cima e o levou até o armário, onde Sophie procurava a peneira.
— Pronto — ele disse, esperando seu próximo comando. Luke deu uma olhada no copo que segurava e ficou curioso para saber o que o botão no início dele fazia. — Ei, Soph, o que esse botãozinho faz?
Sophie virou o rosto na mesma hora e viu Luke com o dedo em cima da válvula de limpeza do copo do liquidificador. Ainda começou a gritar:
— NÃO APER-
Mas Luke já havia apertado a válvula.
A base do copo já havia se desgrudado.
E o suco já havia se derramado completamente pelo chão.
— Oh, droga! — ele gritou, olhando para os pés e o chão completamente grudento, cheio de limonada suíça (ou russa, vai saber).
— Não acredito que você apertou a válvula! — Sophie disse, com os olhos ainda meio arregalados.
— Pensei que fosse um botão — Luke entortou a boca.
Nessa mesma hora, Josh apareceu na própria cozinha e viu o chão completamente molhado. Levantou as duas sobrancelhas e coçou a barba.
— Não vou limpar isso. E acho melhor vocês resolverem antes da sua mãe chegar. — E então, saiu tranquilamente.
Luke e Sophie se entreolharam e depois olharam para o chão. Não puderam segurar a risada.
Mesmo que tivessem de lavar o chão depois.




— Não acredito que você se lembra disso! — Sophie soltou uma gargalhada alta e Luke fez que sim com a cabeça.
— Me lembro! — ele disse. — Nunca mais cheguei perto de um liquidificador depois disso.
— Mas espera aí — Joe se meteu, achando tudo aquilo muito estranho. — Luke, o que você tinha na cabeça? Tipo, apertar a válvula de limpeza do liquidificador? Eu tenho onze anos e sei fazer um bocado de coisa na cozinha. Você tinha doze.
— É, mas você é um menino prodígio, eu era uma criança inocente e ingênua — Luke se defendeu e Joe deu uma risada.
— Ainda não acredito que você lembra — Sophie ainda se esforçava para não rir.
— Lembro sim. Lembro muito bem das duas horas que nós passamos esfregando o chão com detergente e da luta que tivemos que fazer com os rodos e os panos — Luke deixou uma risada escapar.
— Nunca consegui firmar um pano de chão num rodo — ela ainda sorria. — Nunca consegui, não consigo e jamais conseguirei. Está acima das minhas habilidades.
Joe deixou uma risada sair.
— Vocês são muitos filhinhos de papai — disse, com falso desdém.
— Mas nós lavamos o chão e ainda, depois, refizemos a limonada! — Luke disse, engrandecendo-os. — E ficou muito boa.
— Além do mais, foi divertido lavar o chão — Sophie parecia com o olhar vago, como se estivesse revendo a cena na mente. — A gente molhou um ao outro, nos melecamos com sabão... foi bem legal.
— Ser criança era legal — Luke riu e Sophie concordou.
— Me invejem — Joe fez com que os dois rissem novamente.
Nos últimos três dias, Luke e Sophie estavam saindo e incentivando Joe a toda hora. Ele já passava o dia mais sorridente, havia lido mais da metade do livro que Luke o comprara, e estava voltando a ter gosto pela escola.
Não fosse pelos pesadelos, já estava quase como era antes. Tudo bem que de vez enquanto ele ainda dava uma crise de choro, mas com Luke por perto... Sophie se sentia forte para lidar com isso.
Luke não havia se afastado. Ele estava com ela, agora. Um dia antes, ele precisou trabalhar — Luke trabalha três dias por semana —, e disse para Sophie descansar por que ia levar Joe ao trabalho.
O garoto voltou para casa com milhares de novas histórias para contar. Havia se tornado o xodó da gravadora de Jeremy e Taylor.
Sophie estava mais do que agradecida por Luke na vida de Joe. Por causa de Luke, tudo estava... quase bem. O que era muito longe do que ela estava antes de ele aparecer e resolver ajudar.
Era tão acolhedor saber que ela não estava mais sozinha.
— Sabiam de uma coisa? — Joe disse, deixando os mais velhos na expectativa. Quando Luke e Sophie fizeram que não com a cabeça, Joe riu. — Escrevi cinco páginas ontem! Já tô com a história toda na cabeça.
Sophie e Luke se entreolharam com a boca entreaberta, sorrindo, meio perplexos, mas... contentes pela boa surpresa.
— Sério?! — Sophie perguntou para Joe, que sorriu, assentindo. Ela se projetou para frente e abraçou o irmão com toda a força. — Meu Deus, que ótimo! — ela não parava de apertar o pequeno irmão, que deu uma risada abafada.
— Ok, Soph, eu sei que você tá orgulhosa, mas... eu ainda preciso respirar — a voz dele estava abafada. Luke deu uma risada.
— Larga o menino, meu! Você é muito grudenta. — Ele disse.
— Vai à merda — Sophie disse mas ainda com o mesmo tom emocionado. — Oh, meu Deus! Isso é ótimo, você está escrevendo de novo! Vai me contar tudo sobre essa história!
— Não sei se consigo caso eu morra sufocado — Joe deu uma risada sufocada. — Me ajuda!
Luke fez que não com a cabeça e cutucou a cintura de Sophie, fazendo-a dar um pulo pelas cócegas e largar Joe de uma vez. Fuzilou Luke com os olhos depois disso.
— Jamais — ela levantou um dedo —, repito: jamais faça isso. Não nesta vida.
— Só fiz uma cosquinha, calma — ele levantou as mãos em um gesto de submissão.
— Está avisado — ela semicerrou os olhos.
— Alguém aí ainda quer saber da minha história? — Joe revirou os olhos.
— Claro que sim! — Sophie abriu o maior sorriso e olhou para Luke, desfazendo-o na mesma hora, revirando os olhos pelo simples ato de vê-lo. — Conte tudo!
— Hmm... certo — Joe se arrumou no tapete do quarto de Sophie, sentando em cima das próprias pernas. Suspirou, pronto para começar. — Jon Foster Jr. é um rapaz de doze anos, filho único de Kayla Wilhem e Jonathan Foster (o nome dele é Jonathan também). Os pais dele estão sempre brigando, até o momento em que o pai dele vai embora de casa. Ele escuta a mãe dele aos berros falar que o pai dele tinha traído ela. Então o Jon chora muito e foge de casa, decidido a começar uma nova vida onde ele não sofra a má influência do pai. Ele pega um ônibus e vai pra uma cidade vizinha. Então, ele vê uma menina nessa cidade, que também parece fugir de casa. Ele se apresenta e descobre que o nome dela é Alison, e eles ficam amigos e prometem ajudar um ao outro. Alison insiste em não contar a história dela, e Jon respeita isso. A história não vai ser muito grande, até mesmo por que eles só vão passar dois dias fugidos. Conforme os dois vão fugindo (por que a Alison insiste dizendo que eles não podem ficar parados e precisam continuar andando), ela vai mostrando pra ele um lado da vida que ele admira. Ela vai ser a pessoa mais engraçada e de bem que o Jon já conheceu. A única coisa que a Alison vai contar pra ele sobre a vida dela vai ser do quanto o pai dela costumava fazer ela rir, e o Jon fica mais mal ainda por saber que o pai dele não se parecia nada com o pai da Alison. Mas ele se diverte de verdade com ela, e tudo mais, e eu vou detalhar muito a amizade verdadeira deles dois. Mas aí, depois de dois dias, eles acabam sendo achados pela polícia, e enquanto eles ligam para os pais do Jon, ele percebe que eles ligaram para o orfanato também. Então, aí a Alison conta da história dela. Na verdade, ela tinha sido abandonada pelo pai e tinha mentido para o Jon sobre o pai dela, por que a mãe dela (que era a pior pessoa do mundo) deu o “golpe da barriga” no pai dela, mas o pai dela não amava a mãe dela e precisava continuar o serviço militar, então ele abandonou a Alison. Daí, ela ficou amargurada, por que a mãe dela maltratava muito dela, e fugiu. Acabou parando num orfanato, mas fugiu de lá também por que sofria bullying dos colegas. Foi aí que ela encontrou o Jon e eles ficaram amigos. Então os pais do Jon vai buscar ele na delegacia e o pai dele gela quando vê que a Alison tá do lado do Jon. A Kayla, mãe do Jon, reconhece a Alison também e sai do lugar, com raiva, com vontade de discutir. Então o Jon apenas conta os pontos, desde a Alison ser tão parecida com ele, até ela ter tido um pai que a abandonou, e a traição...
— Alison é irmã do Jon — Sophie interrompeu, com o rosto pálido.
— Sim, ela é — Joe deu uma risada. — Jon pergunta isso pro pai dele e ele diz que sim, mesmo relutante. A Alison é levada pro orfanato antes que o Jon conte isso pra ela, mas ele promete ir visitá-la o mais rápido possível. Então o Jon conversa muito sério com o pai e a mãe dele logo depois sobre a Alison, e conta sobre a pessoa incrível que ela era e o quanto não merecia passar o que estava passando. Nisso o pai dele chega até a chorar. — Joe fez uma pausa. — Eu ainda não decidi ao certo como, mas os pais de Jon definitivamente se separam, e o Jon recupera o relacionamento com o pai dele. E o pai do Jon diz pra Alison que é o pai dela e tira ela do orfanato. E... bem, é isso. Eles vivem felizes para sempre. — Joe finalizou com uma piada, mas apenas ele riu.
Enquanto Luke batia palmas, Sophie só conseguia ficar... bem, perplexa. O sangue parecia ter fugido de seu rosto e seus olhos estavam arregalados.
Simplesmente porque... ao invés de fazer um personagem inspirado nele — mesmo que o personagem tivesse as iniciais de Joe (Joe Farro, Jon Foster) —, ele havia feito uma personagem inspirada na...
Bem, na filha bastarda de Josh.
E isso era... louco. Por que nem mesmo Sophie conseguia gastar tempo pensando nessa garota. Na verdade, não tinha certeza se queria conhecê-la.
Mas Joe não. Ele escreveria sobre ela, mesmo que com doze anos de idade. Escreveria sobre a irmã que não conhecia como uma ótima pessoa. E escreveria eles vivendo em conjunto, felizes.
Claro que era tudo uma história, mas era uma história inspirada em Joe.
— Wow! — Luke disse, puxando palmas. — Eu... mano. — Ele deu uma risada, completamente surpreso. — Eu sempre soube que você era um garoto esperto, criativo, talentoso e forte, mas... meu Deus do céu, você conseguiu me surpreender. Quero muito ler isso! — Luke estendeu uma mão para Joe, que apertou-a e sorriu em agradecimento.
— Valeu, Luke — ele ainda sorria. — Eu também gostei da história. Mas... e você, Soph? Gostou?
— Eu... — Sophie engoliu em seco e esboçou um sorriso verdadeiro logo depois — ...nunca me senti tão orgulhosa de você. — Ela deu uma risada e foi novamente abraçar o irmão mais novo, os olhos brilhantes por que sua glândulas lacrimais insistiam em funcionar. Mas ela não chorou. Apenas... estava emocionada.
Com certeza a história era ótima, mas era mais significativa para a família de Sophie do que para qualquer outra.
De repente, ela pensou que não importasse quem fosse a filha de seu pai... ela ia adorar ler aquilo e saber que Alison fora inspirada nela.



[...]



Os olhos dela se abriram.
Sua visão ficou embaçada e ela sentia o corpo todo doer. Com dificuldade, levou as mãos até os olhos, coçando-os e tentando melhorar sua visão precária. Aos poucos, o foco foi se fazendo, e ela percebeu que não sabia onde estava.
Porém estava em um quarto, disso ela tinha certeza. As paredes estavam limpas e pintadas em tom marfim, e havia um quadro de uma artista desconhecido em uma delas. À sua frente, havia um guarda-roupas branco que combinava com o quarto iluminado por uma janela alta, de cortinas abertas. Um relógio de parede pregado ao lado do guarda-roupas mostrava que eram 8h47 da manhã. Ao lado dela, havia uma cômoda também marfim, com um vaso de flores que ela desconhecia em cima. Ela desconhecia, mas sabia que não eram sintéticas. Exalavam um perfume bom. Havia uma porta num dos cantos, e obviamente, ela estava deitada na cama, que era a única coisa não-clara do quarto. Mesmo assim, a madeira da cabeceira da cama dava um ar aconchegante àquele quarto.
Mesmo estando em um ambiente desconhecido — e estando vestida numa roupa que ela igualmente desconhecia —, ela não se sentia ameaçada. Aquilo lhe transmitia uma paz estranhamente desconhecida. E ela não sentia vontade de se levantar e fugir pela janela — o que provavelmente faria em uma circunstância como essa. Danna não queria sair dali.
Então, de súbito, veio-lhe à memória a única coisa que ela se lembrava antes de apagar. Cocaína. Ela havia se drogado, muito.
O que estava fazendo viva?
Foi esse o pensamento que se fez em sua cabeça. A cocaína que havia cheirado era muito mais do que seu corpo suportaria, e ela sabia disso. Sabia que com aquilo devia ter morrido. Será que realmente não estava morta?
Não, pensou ela. Se morresse, não iria para um lugar com flores na cômoda.
De repente, arrancando-lhe um suspiro de medo e lhe causando um arrepio involuntário na espinha, a maçaneta da porta se virou. Ela engoliu seco enquanto a porta se abria levemente.
Porém, quando o rapaz que adentrou o quarto sorriu para ela, Danna soltou o ar que nem percebera que havia segurado. Não sabia bem o porquê, mas ela sabia que ele não lhe faria mal.
— Você acordou — o rapaz ainda sorria simpaticamente de uma maneira quase encantadora. Seu sorriso era uma das coisas mais verdadeiras que Danna já havia visto. — Pensei que já estivesse acordada, então trouxe comida. — Danna notou então que ele carregava uma bandeja com uma xícara de chá, alguns pãezinhos em uma cestinha e alguma fruta fatiada.
Ela não sabia quem era aquele rapaz, mas as sobrancelhas grossas e pretas, assim como o seu cabelo curto, a pele morena, os ombros largos e os olhos negros fizeram com que ela notasse que ele era latino. Seu sotaque também denunciava isso.
Apoiou os cotovelos nos cantos da cama e tentou se levantar, mas lhe faltaram forças para isso. Ela suspirou. Não sabia que estava tão fraca.
— Não se levante! — o rapaz apoiou a bandeja na cômoda com a flor e pegou uma cadeira, sentando-se do lado de Danna, rapidamente. — Você estava muito fraca quando eu te achei.
— Você... — Danna tentou falar, mas sua voz saiu rouca e fraca. Pigarreou, tentando reativá-la. — Você me achou? — apesar de seus esforços, sua voz ainda não estava cem por cento. Ela suspirou novamente. Estava muito fraca.
O rapaz esboçou outro sorriso cativante, assentindo com a cabeça.
— Sim — ele disse com seu sotaque latino discreto. Seu olhar era tão puro e bondoso que Danna não conseguia evitá-lo. — Encontrei você desmaiada num beco escuro, não muito longe daqui, no bairro vizinho. Não podia te deixar lá.
Danna suspirou.
— Deveria ter deixado. — Ela olhou para baixo, odiando-se por ainda viver.
Mas em resposta ao olhar sombrio de Danna, o rapaz apenas sorriu mais uma vez.
— Não diga isso, pequena — ela precisou olhar para ele de novo, encontrando seus olhos puros e cativantes novamente. Quase sentiu vontade de chorar. — Eu não deixaria ninguém daquele jeito.
— Você não entende — ela retrucou, ainda sustentando seu olhar. — Eu merecia ficar lá... eu merecia... eu fiz por querer. Eu... me entupi de cocaína.
— E essa foi a última vez que você fez isso — mesmo que seu sorriso tivesse suavizado, seu olhar continuava seguro e cativante. Não havia um pingo de surpresa. Como se ele soubesse exatamente o que Danna havia feito e, ainda assim, quisesse ajudá-la.
— Como você pode garantir uma coisa dessas? — ela perguntou.
— Apenas garanto. — O rapaz abriu seu sorriso mais uma vez, cheio de convicção. Ao escutar isso, Danna deixou um sorriso mínimo escapar de seus lábios. Não por deboche da garra do rapaz em fazê-la parar de se drogar, mas... bem, ela não sabia bem o porquê estava sorrindo. Talvez estivesse contagiada. — Qual é o seu nome? — ele perguntou, cortando seus pensamentos confusos.
— Danna Faith — ela respondeu de imediato.
— Faith — o rapaz repetiu sílaba por sílaba. — É da sua família?
— É artístico — ela esclareceu. — Sou fotógrafa.
— Ah — ele estava conversando normalmente, mas o olhar puro e o meio sorriso não sumiam de sua face. Danna pensou que ele fosse sempre assim, com aquela expressão boa no rosto o tempo todo. — Por que o Faith, então?
— É uma piada de mau gosto — ela explicou, torcendo os lábios. — É uma piada por que eu não tenho fé nenhuma. Nem em mim mesma, ou nas outras pessoas.
— E quanto à Deus? — seu sorriso se abriu.
Danna respirou fundo.
— Ele nunca fez nada por mim, não acredito que ele exista.
— Mas Ele faz — o rapaz sustentou seu olhar, que parecia mais brilhante do que nunca. — Ele sempre fez. Ele sempre existiu. E sempre esteve com você.
Danna fez que não com a cabeça, claramente discordando. Mas sustentou seu olhar sombrio no do rapaz.
— E o que me prova isso?
O rapaz sorriu.
— Sente esse ar que você respira? — ele encarou Danna com uma expressão serena. — Foi Ele que fez. Foi ele que fez as árvores e as flores que produzem o oxigênio necessário para a nossa vida. Deus não é algo que é visto. Nós o sentimos nos nossos corações. Como o amor.
Danna não soube exatamente o porquê, mas sorriu. Sorriu simplesmente por que sentiu vontade, como ela nunca fazia. Ela nunca sentia vontade de sorrir, mas tudo mudava quando ela estava perto daquele rapaz. Não sabia o porquê, mas... Sentiu que aquilo não importava tanto assim.
— Pelo jeito você é católico — ela disse, refletindo sobre o que ele havia dito sobre Deus.
— Não tenho religião — ele continuava sereno.
— Não? — Danna ficou confusa.
— Não. Não acredito em metade do que os padres ou pastores pregam. Sabe... eu simpatizo com os cristãos protestantes, com o espiritismo, e com outras religiões... mas não tenho nada definido. Acho que para eu seguir o caminho e as leis de Deus eu não preciso ir a igreja todo domingo e pagar um dízimo.
— Então você acredita em Deus do jeito que acredita e não vai à igreja? — Danna arqueou uma sobrancelha.
— Basicamente — ele assentiu com a cabeça.
— E resgata pobres almas das ruas? — Novamente, Danna não sabia o porquê, mas brincou e sorriu.
Logicamente, o rapaz sorriu também. Na verdade, deu uma pequena risada.
— Até agora só “resgatei” você, mas... — ele pareceu refletir. — Sim.
Danna ainda estava com um sorriso discreto no rosto.
— Nossa — ela meio que exclamou. — De onde você veio?
— Ciudad del México — ele abriu mais o sorriso brincalhão e Danna deixou que seu sorriso aumentasse também, diante da brincadeira dele. O rapaz pegou a bandeja no canto da cômoda e colocou em seu colo, logo depois. — Agora você come. Dormiu por quase dois dias.
Danna olhou para os pãezinhos e suspirou, lembrando de sua vida miserável lá fora.
— Acho melhor eu ir embora — ela entortou a boca. — Tenho algumas coisas para resolver.
— Resolva depois, agora você come — ele sorria.
— Eu posso comer no caminho, o meu... — ela olhou para baixo. — Meu pai me deu dinheiro.
— Você não vai sair daqui antes de comer, Danna. — Seu olhar estava decidido.
— Mas...
— Come, vamos — ele insistiu. — Eu mesmo assei os pães.
Danna arqueou as sobrancelhas.
— Você é padeiro?
— Não — ele negou de imediato, mas depois pareceu pensar melhor. — Quer dizer, mais ou menos. Sou um pouco de tudo. Meu pai tem uma mercearia pequena no fim da rua e eu trabalho com ele desde pequeno. Mas que tal comer?
Danna fez que não com a cabeça e segurou um pãozinho com a ponta dos dedos, encarando-o.
— Você é insistente — ela disse para o rapaz.
— E você é teimosa. Coma. — Ele a olhava com os olhos semicerrados, como se ela fosse uma criança que não comera todo o almoço.
Danna sorriu, fez que não com a cabeça e levou o pão a boca. Mordeu um pequeno pedaço e tomou um gole mínimo do chá para descer. Não estava com a mínima vontade de comer.
— Já conversamos um monte e eu ainda não sei o seu nome — ela disse, ainda tentando engolir o pãozinho.
— Hector — ele disse para ela. — Na verdade, Juan Hector, mas me chamam de Hector desde que eu me entendo por gente.
— Hector — Danna repetiu sílaba por sílaba. — O nome do cara que praticamente salvou a minha vida.
— É, pois é. Sou o seu herói. Você não está comendo.
Danna revirou os olhos e sorriu.
— Estou sim! — ela deixou seu sorriso aliviar. — E eu também não te chamei de herói, vamos lá. Até mesmo por que minha vida não vale... nada. — Ela terminou com um suspiro.
Foi só isso que precisou para o sorriso puro e cativante de Hector tomar lugar em seu rosto bonito.
— Se não valesse nada, você não estaria aqui, pequena Danna — mais uma vez, Danna não conseguiu tirar seus olhos dos dele. — Todos nós temos uma missão na Terra. Você apenas não encontrou a sua, ainda.
— Talvez — ela respondeu. — Mas a minha vida toda eu pareço só fazer com que as pessoas sofram... e eu sofro mais ainda com isso...
— Por isso a cocaína? — foi a primeira vez que Hector tocou diretamente no assunto.
— Sim — ela concordou. — Por isso a cocaína.
— Sabe, eu sou um bom ouvinte — ele foi dizendo. — Por que não me diz isso mais detalhadamente?
— Não é uma boa história — ela disse, suspirando.
— Não esperava que fosse — Hector disse de imediato. — Mas me contar talvez te ajude.
Danna refletiu por um segundo. Contar sua história a um estranho? Ela nunca conversara diretamente com ninguém sobre aquilo. Contar a uma pessoa, ainda por cima que ela acabara de conhecer... seria insano, certo?
Bem, ela não sabia. Havia algo no sorriso e no olhar de Hector que fazia com que ela quisesse contar tudo para ele e chorar como uma criança desamparada, o que, no fundo, no fundo, ela era. Mas Hector lhe transmitia uma calma, uma paz, uma confiança que ela jamais havia sentido em outra pessoa.
E... meu Deus, ele havia salvado sua vida, sabendo que ela era uma drogada de merda! Estava conversando com ela e sorrindo a todo momento, provavelmente hospedara Danna — uma drogada desconhecida — em sua casa! Ela estava em sua cama, comendo os pães que ele mesmo havia assado!
Ele merecia crédito. Simplesmente por estar sendo mais legal com Danna do que qualquer pessoa que ela já havia conhecido.
— Ok... — ela respirou fundo, largando o pãozinho pela metade na bandeja. — Minha mãe... quando engravidou de mim, ela estava namorando com um cara, mas quando eu nasci esse cara suspeitou que eu não era filha dele. No fim, não era mesmo, e ele deixou minha mãe. Então ela entrou em contato com o meu pai de verdade, que estava no serviço militar na época, e... ela tentou dar o golpe da barriga nele, já que com o outro não deu certo. Mas ele não se deixou abater, não queria... sei lá, fazer uma vida com ela. Então ele me deixou com ela, pagando uma pensão. Acontece que... ela é uma pessoa horrível — Danna fez uma pausa, respirando fundo, lembrando do rosto de Jenna, sentindo a raiva tomar conta de si. — Eu passei toda a minha vida aturando e suportando os abusos dela. Ela me odiava... ela me odiava tanto. E ela dizia isso pra mim sempre que tinha oportunidade. Eu fui uma criança sem pai nem mãe, cresci como uma adolescente revoltada e fiz de tudo quanto é coisa ruim que exista. Quando eu cresci, soube de verdade quem minha mãe era... toda noite eu via ela saindo com qualquer cara desses que sustentava os caprichos dela, e eu odiava tanto isso. Eu passei por muitos problemas nas escola, mas ela nunca ligou. Uma vez eu apanhei de umas cinco garotas, e quando eu voltei pra casa ela só olhou pra mim e disse “bem feito”. Ela sempre jogava na minha cara que eu tinha arruinado a vida dela, que ela devia ser uma mulher livre e feliz com o meu pai ou com o outro cara, mas eu tinha atrapalhado e estragado tudo isso. Ela dizia que eu era uma pedra, uma imprestável, uma inútil, e que eu só trazia desgosto pra ela. Todo santo dia. Ela não hesitava em fazer isso. Em me humilhar e mostrar que eu era uma nada. E eu... cresci assim. Acreditando nisso. Odiando ela. Odiando o mundo. Odiando a mim mesma. — Danna olhou para cima, procurando segurar a vontade de chorar. Respirou fundo. — Então, quando eu fiz dezoito anos, eu saí de casa. Fui pra Nova York, mas não agüentei ficar dois meses lá. Era tudo muito corrido e eu não sabia como... me virar. Fui pra São Francisco, e fiquei pouco mais de um ano lá, até ver que não dava mais, então fui pra Seattle. Lá eu fiquei a maior parte do tempo, um ano e meio. Mas os problemas começaram a surgir e eu decidi sair de lá de vez. Então eu vim pra Nashville... e foi aí que eu me ferrei de vez. Como sempre, eu não tinha onde trabalhar e vendia minhas fotos para algumas revistas, jornais, anúncios, empresas de marketing e essas coisas... Mas já tinha um tempo que eles não compravam nada. Então a minha câmera quebrou, e o meu aluguel ficou super atrasado. Eu não tinha mais nem como me sustentar. Tudo o que eu tinha eram trezentos dólares de emergência, e... só. Mas eu devia quatrocentos de aluguel. O conserto da minha câmera era absurdo e eu não tinha como arranjar um emprego. Fiquei... desesperada. — Danna fez uma outra pausa, respirando. Hector a escutava com atenção. — Então, eu já não tinha mais opção, estava sem perspectivas, e precisei fazer a única coisa que eu podia... eu fui pedir ajuda pro meu pai. Eu... fui fraca. Não tive como me sustentar e fui pedir dinheiro pra ele. E ele ficou surpreso em me ver... muito surpreso. Mas ainda assim foi legal comigo, e se mostrou atencioso... e me deu mais do que eu precisava. O problema é que a esposa dele chegou bem na hora. E ela descobriu tudo. — Danna olhou para as próprias mãos, sentindo a raiva de si mesma crescer. — E... droga. Eles brigaram na minha frente... e eles tem filhos lindos, e são felizes, e... Eles se amam tanto, tanto... Eu jamais iria querer estragar a vida deles, por que eu já vi eles juntos, e... é tão lindo. Eu nunca iria querer que eles sofressem por minha causa, por que eu sou tão insignificante... e eles são tão felizes. Eles merecem aquela felicidade... mas eu estraguei tudo, Hector. Estraguei a vida de uma família perfeita. Pior ainda, estraguei a família da única pessoa no mundo todo que se importou comigo. Que mesmo sem estar presente na minha vida, me presenteou com a bondade dele, pra que eu não me tornasse como ela. Eu estraguei tudo, tudo. Então... eu peguei os trezentos dólares que tinha e fui me drogar. Pra... sei lá, me matar de vez. Acabar com isso.
Danna terminou de falar e passou a encarar a bandeja com o café da manhã à sua frente. Não queria olhar para Hector, pelo menos, não agora. Não merecia aquela compaixão que ele demonstrava.
Mesmo sem olhá-lo, ela percebeu que ele se endireitou na cadeira que estava sentado. Não demorou para ouvir a sua voz:
— Deixa eu ver se eu entendi — ele começou. — A sua mãe te tratou mal a vida inteira, o seu pai te privou da vida dele e não contou da tua existência para a própria esposa e os outros filhosdele, e você acha que você estragou tudo? — pela primeira vez, ele não estava com o sorriso bondoso no rosto. Mas a sua expressão ainda assim conseguia ser acolhedora. — Danna, isso não faz nenhum sentido...
— Você não entende — Danna suspirou.
— Entendo, sim... só acho que você está se culpando por algo que não é sua culpa — ele continuava calmo.
— Mas é minha culpa! — ela levantou a voz. — É minha culpa, Hector! Sempre foi!
— Não — a calma em sua voz era eminente, ainda assim. — Sabe... quando alguém diz muitas vezes que você está errado, você acaba se esquecendo que estava certo. Sua mãe te fez crescer acreditando que você era insignificante, mas, acredita em mim quando eu digo que você não é.
— Você não me conhece — Danna o cortou, com os olhos já marejados.
— Não é preciso te conhecer minuciosamente para isso — ele a encarava com ardor. — Eu soube disso assim que te vi desmaiada naquela rua escura, soube disso quando te levei pro hospital e fizeram a limpeza no seu sangue, e estou sabendo disso agora, conversando com você, enquanto você se coloca na frente de todo mundo para proteger uma pessoa que supostamente nunca ligou pra você — Hector fez uma pausa, mas ainda a olhava de uma maneira que fazia Danna querer chorar. — Eu tenho certeza que quanto mais for te conhecendo eu vou saber que você não é tudo isso que diz ser.
— Como você tem certeza? — Danna disse em tom quase provocativo, tentando a todo custo impedir as lágrimas de caírem.
— Posso ver nos seus olhos — Hector respondeu com a maior tranqüilidade do mundo, pouco antes de deixar um sorriso quase encantador se abrir em seus lábios.

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